Quando não consigo explicações racionais para os problemas mais naturais, fujo para as artes e extravaso o acumulado de sentimentos ora num poema, ora numa crônica, ora numa tela. Uma das minhas últimas tentativas de desafogar os sentimentos (sempre agônicos), tem sido a experiência de reescrever a minha infância. Por vezes resulta meio reinventada, mas sempre baseada em algum fato que me aconteceu algures no tempo e no espaço que já vivi. A crônica que segue é um exemplo desse lampejar de luz e do reflexo que produziu em mim. Espero que percebam na sutileza das entrelinhas literárias o conteúdo daquilo que sou, e assim possam conhecer-me melhor. Voilá!
Como nasce um projeto social (individual)
Minha mãe sempre me ensinou a dividir. Coisa complicada essa história da divisão. Já no infantário fiz a minha primeira experiência matemática do equilíbrio e da justiça social. Mais tarde voltei a estudar a mesma história numa tal teoria complexa, que de tão sólida se desfez no ar. Mas a minha experiência não desapareceu de minha memória e está gravada como marca indelével. Foi com o meu amigo diferente, que fiz minha primeira aula de matemática-sociológica. Disse-me a professora que ele era pobrezinho, por isso não levava lanche para o recreio. Por este fato, fomos todos motivados a dividir o que tínhamos com ele. Era uma riqueza de bolachas, biscoitos de todos os tipos, maças e “ki-sucos” de todos os sabores. Aprendemos assim a fazer uma divisão, cada um de nós dava uma parte do que tinha na lancheira para o escurinho. Funcionou nos primeiros dias, mas não para sempre. Dias depois, eu que era muito inteligente, percebi que o dito cujo estava a acumular riquezas. Recebia tanto que não conseguia comer tudo e metia um bom bocado do que sobrava na sua lancheira, que sempre chegava vazia e voltava abarrotada.
– Injustiça! fui logo gritando, querendo resolver o problema social – Se não tens fome devolve minhas bolachas, isso não é justo! Era por justiça que eu reagia daquela forma explosiva, não por maldade, nem por egoísmo.
– Zóio azul – respondeu ele – não é falta de fome não, isso até tenho bastante. Não comi tudo para sobrar um bocadinho para dividir com meus três irmãozinhos que estão em casa.
Foi ai que eu aprendi que o mundo é maior que o meu mundo particular e que eu não poderia resolver sozinho o problema da divisão das riquezas, porque sempre haveriam desigualdades e necessidades para dividir. O que ainda não entendo bem é essa minha natureza teimosa e utópica. Nunca consigo desistir de tentar; tenho sempre a esperança de conseguir e por isso sigo fazendo contas.
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