terça-feira, 27 de novembro de 2007

Internet é "a grande inimiga da família", diz presidente da OMF

Às vezes assusta-me determinados posicionamentos de líderes de instituições internacionais. A última, e mais chocante, foi a declaração da presidente da OMF (Organização Mundial da Família), uma instituição ultraconservadora que nasceu em 1947 com o objetivo de reunificar as famílias dispersadas pelas 2ª Guerra Mundial. Para meu desprazer, a tal presidente é uma brasileira, a curitibana senhora Dra. Deisi Kusztra, que vem em público, numa cúpula mundial fazer uma afirmação tão ridícula quanto patética. Segundo fontes da EFE, publicadas pela Folha OnLine, Deisi Kusztra, disse nesta segunda-feira que a internet é a "grande inimiga" da família na Europa e países desenvolvidos. Segundo ela, juntamente com a globalização, a tecnologia estaria fazendo com que piorasse a situação das famílias no mundo. "Antes dizíamos que era a televisão, mas hoje é a internet que afeta negativamente as famílias e cria muitos problemas, sobretudo entre as crianças" (...). Pornografia, pedofilia, drogas, crimes, maus hábitos, tudo isso pode chegar às crianças por meio da rede e isso traz muitos problemas".
Desde o início de meus estudos sobre sociologia da técnica e tecnologia venho discutindo afirmações absurdas como esta que deslocam a responsabilidade de uns para os ombros dos outros. A ciência, juntamente com a técnica e a tecnologia, tem sido, desde sempre, alvo de um olhar receoso por grande parte dos “homens (e mulheres) comuns”, ou seja, daqueles que não possuem uma iniciação científica ou tecnológica. Ouvir tal afirmação de um leigo, de um usuário de tecnologias que nunca estudou a ciência é uma coisa até aceitável, mas ouvir um disparate deste de uma doutora é algo lastimável. Médica, pediatra e doutora em saúde pública, a ilustríssima senhora vem a público jogar a responsabilidade das desventuras de uma instituição social desreferenciada para elementos, como se no Ciberespaço não houvessem famílias ou não fosse espaço de famílias.
De fato, alguns autores, no início dos estudos sobre a técnica e a tecnologia atribuíram à tecnociência um papel semelhante ao que os mitos ocuparam na Antiguidade, ou seja, de entidades possuidoras de forças extraordinárias capazes de transformar a realidade vivida em novas realidades inimagináveis. Mas já há muito que esta visão parcial e mitificadora tem sido rejeitada pelo estudiosos sérios. Trato destas questões pormenorizadamente em meu livro no capítulo 2, e por isso não me vou alongar aqui. Sou do posicionamento teórico filosófico de muitos autores que têm se esforçado em mostrar que a tecnociência não é uma criatura diabólica. Faço uso da imagem ilustrativa de Collins e Pinch, que diz que a tecnociência não é nem boa, nem má, é só um tanto boba. Tais autores utilizam uma imagem ilustrativa que compara a tecnociência com o Golem, uma criatura mitológica judaica que possui uma grande força e capacidade, mas que, é um tanto desajeitada ao realizar as suas ações. Devido ao seu tamanho e sua grande força – de cuja dimensão o Golem não possui total noção – torna-se um ser perigoso para conviver com seres menores e mais fracos; ou, ao menos, essa convivência exige um cuidado redobrado para evitar acidentes inesperados. Em resumo, “a ciência do Golem não pode ser responsabilizada pelos seus erros; os erros são nossos”.
Outra visão que tenho lutado muito contra é a noção de “impacto”. A tecnociência não é algo à parte da sociedade, ela é constituinte e constuidora do corpo social. Por isso afirmo com Dra. Tamara Benakouche, é “preciso desmistificar a falsa autonomia da técnica, rejeitar a noção de impacto tecnológico, reconhecer, sobretudo, a trama de relações – culturais, sociais, econômicas, políticas que envolve sua produção, difusão e uso. Em outras palavras, a tecnologia não faz parte da sociedade, ela “é a sociedade.
O Ciberespaço, desde o início dos estudos sobre, tem vindo a ser identificado como um espelho recriado, virtual da realidade. O Ciberespaço (o mundo da Internet), não é artificial, é real. Ser virtual não é ser irreal, já afirmaram tantos autores, dentre eles para citar apenas dois mais conhecidos no mundo ciber, Pierre Levy e Manuel Castells. A internet é apenas um meio de socialização como tantos outros. Compõe-se de uma rede, mas não de uma rede de computadores: é uma rede de pessoas. Toda as mazelas encontradas na Internet, tudo o que ela possui de bom, tudo o que proporciona de positivo e de negativo, tudo isso é espelho da sociedade em geral. Tudo que se pode encontrar na Internet, encontra-se fora dela, e só está nela porque é espelho da sociedade da qual faz parte.
Eu pergunto à senhora Dra. Deisi Kusztra, quem é o pai que deixa o filho solto no centro de uma grande metrópole, sem dar-he educação e conselhos, e não teme que ele seja corrompido pelas maldades da sociedade, pela violência das cidades, pelo egoísmo de uns, pela lascívia de outros? E por que deixariam os pais, no ciberespaço, seus filhos soltos sem acompanhamento, sem orientação, sem cuidados? Qual o papel da família neste caso? Qual o papel dos pais? onde fica o papel fundamental da família, de ser espaço primeiro de socialização, de educação e de orientação para a vida? A Internet é o instrumento do diabo porque temos medo dela? Ou porque queremos culpar alguém pelas nossas impotências e limitações? O que devem fazer os pais, impedir seus filhos de freqüentarem o ciberespaço para salvarem a família, proibí-los de acessar este universo social? Que família estamos utilizando como referência? Onde vive esta família ?
Cara Dra. Deisi Kusztra, o seu papel como presidente da OMF é convocar as famílias para suas responsabilidades, demonstrar, clarificar, criar meios para que os pais percebam a sua responsabilidade enquanto educadores, guias, orientadores, mas não empurrar o lixo para debaixo do tapete. Cuidado, no primeiro vendaval ele pode lhe ser atirado todo na cara.

2 comentários:

Anónimo disse...

Sem comentários amigo, estas instituições conservadoras ainda causam muito estrago com seus posicionamentos retrógrados e com seus porta-vozes completamente tapados e mal preparados.
Valeu a crítica. Parabéns!

Anónimo disse...

Linda reflexão, parabéns.
Debora Pacheco - Campinas