segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A dosagem, a toxidade e a superabundância


Noutro dia, em meio a um bar na pacata cidade lusitana do conhecimento, eu e mais três amigos, todos ilustrados, caímos numa longa conversa sobre a dosagem, a toxidade e a superabundância. Este último termo não correu na conversa, fui eu quem o forjou depois de algumas reflexões. Vale ressaltar que estava diante de dois grandes nomes da química, que por vieses diferentes (um bioquímico e outro bio-agrônomo) percorremos bancadas de laboratórios, falamos de reagentes, de financiamentos para ciência e tecnologia, de software, de jogos políticos, de corrupção, de tabela periódica, de fator H, de metais pesados, de aparelhos e computadores, de vidrarias e tantas outras coisas que compreendem as nossas vidas de laboratório, rodeados de elementos humanos e não-humanos que compõem a nossa prática cotidiana de fazer Ciência. Foi ali, no Moelas (bar genuíno de Coimbra), que produzimos uma mini-conferência interdisciplinar, ou melhor, transdiciplinar, sobre a medida do bom e do reprovável. Em outras palavras, daquilo que necessitamos e daquilo que nos faz mal.
Faz muito tempo que as ciências sociais abandonaram quase repulsivamente uma interpretação biologicista da sociedade. No início destas ciências, os pais fundadores possuíam uma visão assim, de que a sociedade era similar a um organismo vivo, a exemplo da tão bem sucedida ciência de então, a Biologia. Émile Durkheim, considerado o pai da Sociologia, comparava a sociedade a um corpo humano, com suas “funções” claras e objetivas, daí o surgimento do paradigma funcionalista. Cada instituição social correspondia a uma parte do corpo e caso uma delas faltasse era considerado, no linguajar científico, como uma anomia, se uma parte não funcionasse como deveria funcionar, era considerada como se estivesse doente, um caso patológico a ser tratado e restituído de saúde. O campo que determinava a saúde do corpo biológico para a ciência (na época) era a Medicina, e para a sociedade era o Direito. Esta é uma visão hegemônica ainda hoje nas ciências em geral quando se trata de sociedade, principalmente no Direito e algumas disciplinas correlatas. Entretanto, já bastante criticada e, de alguma forma, suplantada nos meios acadêmicos mais atuais que preferiram rejeitar esta visão funcionalista e organicista, por outras de vieses estruturalistas e culturalistas.
Não venho neste texto argumentar em defesa do retorno de uma visão funcionalista de ciência, nem a forte componente positivista de meus colegas das ciências “duras”, mas, por um sistema de analogias ecológicas, que ultimamente me tem vindo a se impor, quero ressaltar uma imagem ilustrativa que pode me vir a servir mais ou menos como parábola argumentativa. Meus colegas falavam na ocasião, partindo de seus referenciais mais caros, o da química, sobre a propriedade dos elementos e sua relação com os organismos vivos, um deles especificamente trabalhando com questões relativas aos organismos humanos (o bioquímico) e o outro com organismos vegetais (o bio-agrônomo). Ambos estavam de acordo de que na natureza encontram-se uma variedade de elementos químicos que compõem os átomos, que por sua vez são os constituidores de nossas células, órgãos e corpos. Também concordavam que tais elementos são absorvidos de forma natural, ou induzidos, pelos organismos através dos processos de alimentação (nutrição) ou contaminação, direta ou indiretamente. A questão que permeou o debate era sobre o limite aceitável desses componentes e o que definia que um dado elemento passasse de “essencial”, para “não essencial”. Cabe aqui um preciosismo científico que faço ressalva, para um, tudo o que não é essencial é diretamente tóxico, o que seria determinado pela dosagem, e para o outro os tóxicos compreendem um terceiro grupo de elementos à parte. Debate travado, consenso nunca facilmente atingido entre campos distintos da ciência, conclui-se pela necessidade de maiores estudos e de uma nova rodada de discussões e de testes que comprovem empiricamente a validade das hipóteses de um, e de outro.
Eu, de minha parte, calado quase todo o tempo, a rir-se com outra colega do grupo de diversas situações de exaltação que se travavam entre os “cruzados” cientistas, não permaneci incólume ao debate. Como alguns sabem, ainda acredito na máxima dialética de que toda linha discursiva parte da relação entre uma tese e uma antítese, para chegar a uma síntese. A síntese do debate centrou-se na proposição, mais ou menos consensual, de que todo elemento em excesso pode (apesar de não haver acordo de que se transformaria em tóxico) provocar danos de alguma forma para o organismo. É aqui que eu, um jurista, economista, sociólogo, entro com o meu conceito de superabundância e minhas reflexões eco-analógicas. O excesso, ou seja, a superabundância, de fato, tem sido há muito tempo a causa de tantos problemas sociais. O problema da divisão das riquezas, da concentração por parte de uns e da ausência por parte de muitos outros tem sido a grande questão que tem motivado pilhas e pilhas de investigações acadêmicas, que seguem de trabalhos de conclusão de curso até teses de doutorado. A má distribuição dos bens produz a riqueza e a sua antagônica, a pobreza. A riqueza produz individualmente uma série de benefícios materiais para o rico, mas socialmente causa um elemento disturbador, patológico: a pobreza.
Gostei dessa imagem eco-comparativa, ou eco-analógica. Pensar que o excesso é veneno, tóxico, doença, mal, é uma forma de buscarmos o equilíbrio. Eu que ando tanto no meio de engenheiros e de máquinas, estou a gostar de agora também andar entre químicos e pipetas. A complementaridade de saberes é necessária de ser empreendida através de um processo de “tradução”, não de substituição ou de pura incorporação. Fazer uso de linguagens co-relatas não é assumi-las literalmente de forma cega e acrítica. É necessário dialogar, e não rejeitar o diferente. A cosmovisão dos meus colegas das ciências duras pode ser um tanto questionável para mim, que sou das ciências “moles” (????, lol, sempre rio disso), mas não pode ser auto-excludente. Senão estaremos criando barreiras, onde poderíamos estar construindo pontes.

2 comentários:

Anónimo disse...

Apesar de ser ativista do software livre, e gostar das suas publicações que sempre me atualizam sobre o tema, gosto mais do teu blog assim, uma expressão das tuas preocupações gerais. Você é um cronista de mão cheia e devias escrever para um jornal. Adoro ler os teus textos.
A amiga,
Renate

Anónimo disse...

Gostei do crítico da ciência Dr. Fly. Tenho certeza que tem muito de influência do teu orientador nesse texto. Um dos primeiros textos que li do Boaventura foi "Uma crítica da Ciência", eu ainda estava no primeiro semestre do Direito. Lembra das nossas festas por Floripa. Saudades de doer o coração de você e de todos que nunca mais vi. Quando você volta para o Brasil?
Ana Teresa Sobral (a Anasô)