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A questão colonial mal resolvida do problema da pluralidade, ainda existente em nossas sociedades democráticas, é o peso opressor da versão dominante. Em geral, o pensamento hegemónico costuma-se impor de forma violenta, produzindo cosmologias justificadoras, não-existências(1), naturalizações e generalizações. No caso do terrorismo, como afirma Boaventura, o que é específico é “apenas o facto de o discurso conservador ser completamente dominante” (2).
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Acontece que, ao produzir uma cosmologia dominante e generalista, esta forma tipicamente colonial de produção de ideias nega o debate acerca dos temas de interesse colectivo, impondo perspectivas unilaterais, via de regra utilizadas como argumentos para justificar interesses específicos dos poderes dominantes. Isso acontece actualmente com a definição de terrorismo.
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Corre solto nos meios de comunicação hegemónicos a promoção de definições frouxas, pouco elaboradas de terrorismo, presentes nos discursos de líderes políticos, intelectuais, analistas políticos, etc. Nas palavras de Santos,
“Eis os traços principais deste discurso: “terroristas” são terroristas, ou seja, as definições oficiais de terrorismo são as definições “naturais”, óbvias; o terrorismo nunca teve êxito; os terroristas são nossos inimigos e como tal devem ser tratados: a sua violência deve ser enfrentada com a nossa violência; tentar compreender o terrorismo para além deste quadro é ser cúmplice com ele” (idem, 2).
Raramente acontecem análises bem fundamentadas, onde uma reflexão jurídico-política sobre a natureza do que é o terrorismo é avançada como critério primeiro para a posterior utilização da definição. Conforme estabeleceu o próprio Departamento de Defesa dos Estados Unidos, o país que se especializou em definir este termo, o terrorismo é:
“um tipo muito específico de violência, apesar de o termo ser usado para definir outros tipos de violência considerados inaceitáveis. Acções terroristas típicas incluem assassinatos, sequestros, explosões de bombas, matanças indiscriminadas, raptos, linchamentos. É uma estratégia política e não militar, e é levado a cabo por grupos que não são fortes o suficiente para efectuar ataques abertos, sendo utilizada em época de paz, conflito e guerra. A intenção mais comum do terrorismo é causar um estado de medo na população ou em sectores específicos da população, com o objectivo de provocar num inimigo (ou seu governo) uma mudança de comportamento" (3).
Outras definições clássicas avançam no mesmo sentido. Porém, uma linha atravessa todas essas versões: a ameaça à integridade da vida e da pessoa humana. Um acto terrorista é sempre uma violência contra a integridade e à vida das pessoas. Uma intimidação a partir de uma violência contra a pessoa humana.
No último no "Relatório sobre a Situação e Tendências do Terrorismo na União Europeia" (UE), publicado pelo Gabinete Europeu de Polícia (Europol), relativo a 2007, uma acção ambientalista contra a produção de alimentos geneticamente modificados (transgénicos), no Algarve português, em Fevereiro do ano passado, foi classificada como acção terrorista [ver notícia]. De facto, existe uma preocupação larga em difundir um conceito específico de terrorismo, o “terrorismo ecológico”, e isso não é novidade. Acontece que, segundo as definições acima apresentadas, a acção ecológica de Silves, em Portugal, não teve nada próximo a um acto terrorista, por não ter executado nenhum tipo de atentado e uso de violência física, e sim uma manifestação de carácter ideológico (ecológico) e político (contra monocultura agrícola monopolista). Ocorreu sim, a destruição de uma plantação agrícola e isso pode ser entendido como atentado violento contra a propriedade, não contra o proprietário ou grupo de pessoas. Foi, portanto, um acto civil que lesou uma propriedade civil e como tal, pode ser julgado. É, no mínimo ridícula a alegação de terrorista, descartada até mesmo pela avaliação do próprio agricultor afectado.
Enfim, independente dos contornos definitórios ainda em aberto, o termo terrorismo está cada vez mais sendo utilizado como meio de justificação de interesses hegemónicos, com o auxílio dos meios de comunicação comprometidos com tais interesses. Em geral, jamais é admitido a possibilidade de considerar como terrorismo o acto da manipulação biológica efectuado indiscriminadamente por grandes empresas de produção de sementes, os riscos e a ameaça para o ecossistema, nada disso é entendido como terrorismo, apesar de ser violência “imposta” a toda uma sociedade. Já a acção de resistência dos povos sim, que em qualquer teoria democrática legítima figura como um direito natural a ser respeitado, este sim, é transmutado numa violência inconcebível e inquestionável, pois viola o direito “naturalizado” da propriedade individual. Muitas críticas aqui poderiam ser feitas, mas apenas para terminar, ratifico minha opinião que, nas democracias ocidentais modernas, o povo tem o único direito reservado de “obedecer”, e quando isso não ocorre por meio da resistência, em seguida formula-se um meio de opressão. Na actualidade, o terrorismo justifica a opressão policial legítima. Dá o que pensar!
Notas:
(1) Entendo por “não-existência” todo processo que oculta realidades consideradas irrelevantes ou que são contrárias aos interesses hegemónicos. Na questão colonial, a produção de não-existências deu-se de forma deliberada e frequente, negando,ocultando e ignorando a existência do “outro”, do diferente, do subalterno como actores e factos dignos de serem considerados, reconhecidos e respeitados.
(2) SANTOS, Boaventura de Sousa. Terrorismo: dois discursos. Artigo de opinião publicado na Revista Visão, em 21/07/05, acedido em 13/04/2008, in: http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/135.php.
(3) Fonte: Wikipédia, acedido em 14/04/2008, in: http://pt.wikipedia.org/.
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