quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Crise de emancipação: informação que produz formação (???)

A população brasileira está a passar por uma crise de independência que se estende desde a sua Independência formal de Portugal, no final do século XIX, culminando com o fato político de 7 de setembro de 1822, representado alegoricamente pelo famoso grito do Ipiranga. Entretanto, não é dessa emancipação política que quero me referir neste texto. É da capacidade de emancipação cognitiva e de escolha que sempre foi controlada neste país, pelos mais diferentes instrumentos, fossem eles diretos, como as ditaduras e seus aparelhos de censura e repressão, fossem os indiretos, como a televisão, a imprensa e as novelas, como criadoras de um padrão cultural geral para esta nação-continente.

Nem vou me referir da Educação formal, pois esta, coitada, na sua grande maioria sempre foi uma natimorta, está falida desde antes de ter nascido oficialmente. Observe o leitor que eu não sou um generalista, e nem um cego. Paulo Freire, uma das maiores personalidades mundiais dos últimos tempos, era brasileiro, e o desenvolvimento teórico e até prático no campo da pedagogia brasileira é vastíssimo e inovador. Pena que todo este acúmulo não chega aos projetos políticos pedagógicos das escolas e aos alunos. O ranço positivista dos militares ainda permeia a cosmologia do universo educacional do país, sobretudo nas escolas públicas. Enquanto isso, em pleno século XXI, percorro o conteúdo programático de alunos dos cursos de pedagogia de uma universidade federal e, com um assombro, vejo com tristeza que ele está fartamente preenchido com autores europeus e americanos de todos os naipes, renomados pensadores, sem tirar e nem por de seus méritos; entretanto, fica patente, também, a ausência de um “santo da casa”, Paulo Freire continua a ser um ilustre desconhecido (ou rejeitado) pela academia brasileira. Que pena! E disso dou testemunha porque vi e lastimei.

Ontem, enquanto navegava na Internet em busca de alguma informação, mantinha a TV ligada na Rede Globo de Televisão, uma das maiores emissoras de TV e rede de comunicações do mundo. Estava a passar o fenômeno global BBB VIII (Big Brother Brasil VIII). Fiquei impressionado em ver a maneira nada discreta de manipular a opinião pública deste programa. Qualquer indivíduo mais ou menos culto pode notar isso, apesar desta ser uma opinião quase unânime de todos os telespectadores. Através da seleção de cenas e da edição das imagens e textos acompanhados de uma música, não era difícil perceber quem deveria cair nas graças do público e quem deveria ser rechaçado, ou “emparedado”. Isso tudo, escamoteado pela suposta vontade popular, pois segundo seu apresentador principal, o BBB é a mais pura expressão da democracia aberta: nele é “você” quem decide. Este fenômeno não se restringe ao programa BBB, está presente no jornalismo informativo (eu diria, formativo), e na principal difusora de cultura e imaginários, as novelas. Esta ultima, penso eu, juntamente com as Igrejas, com a família e com a Educação formal constituem o principal quadro de produção cosmológica deste país.

Também ontem perdi uma boa meia hora a ver um bocado de novela. Na mesma medida que é informativa e educadora, pode ser difusora de falsa consciência (parafraseando o velho Marx) e condicionadora. Num capítulo vi uma brilhante cena de um enredo que valorizava a reprovação do preconceito racial. Excelente contribuição! Noutra, uma apologia à justiça humana feita pelas próprias mãos, a banalização da desonestidade, da corrupção, da violência, bem como as suas naturalizações, como se fosse premissas in nature da essência brasileira. Cenas de violência em uma favela, comandada por um líder autoritário que é seguido pelo seu feudo como se fosse um herói paternal. O retrato cruel da permanência do paternalismo, do clientelismo e do coronelialismo na vida política desta fração de terra americana. Nada de mentira, nada de ficção, a mais pura realidade, entretanto, naturalizada demais como se fosse imutável, e até, de certo modo, aceitável. A personagem do Sr. Juvenal Antena, o líder comunitário da favela da Portelinha, uma ocupação irregular de terras capitaneadas por ele próprio, está transmutado, na novela, na figura de um benfeitor, uma espécie de Hobin Wood urbano, escamoteando a sua verdadeira identidade de “Chefe do Morro”, do tráfico, do poder paralelo, da dominação, da submissão às suas vontades e seus interesses.

Se isso acontecesse apenas no mundo virtual da TV, até que não seria desalentador, pior que como dizem meus mentores teóricos, o virtual é o espelho recriado do real, e por isso, acontece evidentemente no plano do concreto, fora das telas das novelas, jornais e BBBs. Fiquei pasmo ao ler o comentário da Eliane Cantanhede, na Folha de São Paulo. Esta jornalista, que atualmente é colunista deste jornal, foi atacada da pior maneira possível, com palavriados de baixíssimo teor moral, apenas por tentar, com sua experiência, alertar a população para um risco eminente de epidemia, muito provável e possível. Os detalhes, que não reproduzo aqui, o leitor pode encontrar lendo na íntegra a sua crônica “Seis casos, cinco mortes”, publicada pela Folha, em 16/01/2008. Segundo a autora, que já cobriu um caso semelhante durante o governo de Governo Ernesto Geisel, durante o regime militar, ahora não é de dúvidas, é de se vacinar. Naquela época, apesar das declarações contrárias do Ministro da saúde de então, o país estava ingressando numa preocupante epidemia de meningite que levou a óbito muitas pessoas, principalmente crianças. A autora teve, inclusive, uma entrevista captada pela censura do regime e proibida de ser publicada na Revista Veja, pois, segundo o governo de então, declarar a verdade poderia causar caos na população em busca de tratamento adequado. Hoje, os casos de mortes por febre amarela ainda são poucos, apesar de que os 5 casos confirmados não possam ser banalizados (quem gostaria de ser o próximo?). Tudo isso pode ser evitado com vontade política e respeito à população. Existe tratamento preventivo, as vacinas! Mas a população precisa ir tomá-las e o governo tem de fornecê-las. Apesar de o Brasil ser o maior produtor desta vacina no mundo, o estoque não é suficiente para atender a demanda de toda a população. Com o medo de que ocorra uma corrida desenfreada aos postos de saúde em busca das mesmas, o governo tem optado por uma política seletiva, delineando áreas de risco intenso, áreas de risco moderado e áreas de risco baixo. Não existe no país nenhuma área de risco zero, apesar das informações contrárias propagadas pela TV, pelos responsáveis de saúde, etc. No plano ideal, a atitude mais correta seria imunizar a maior parte da população possível, em massa e logo. Mas isso representa custo e articulações políticas. Enquanto morrem apenas esparsos agricultores e moradores de regiões de matas, não existe prioridade. A prioridade vai começar a ser uma questão quando começar a matar artistas da Rede Globo, filhos de deputados e algum representante da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Como está a acontecer com a Dengue, que, aliás, é transmitida pelo mesmo mosquito, o famoso Aedes Egypt. É fato que nem todo mosquito está contaminado e faz mal, mas se hoje temos o Aedes em praticamente todo o território nacional, e antes estava delimitado a áreas circunscritas, o que nos garante que a doença não se espalhe também? Por que é o governo que decide quem deve, ou não, procurar os postos e tomar a vacina? Não deveria ser cad cidadão, com sua autonomia própria a decidir? Não é um direito ter acesso à vacina? Não é obrigação do governo produzí-la e fornecê-la?

Eu tomei minha vacina ontem. E no posto onde fui, ela tinha recém chegado e já estava novamente por terminar. E você? Vai ficar acreditando na “informação/formação” do governo transmitida pela Rede Globo?

Sem comentários: