segunda-feira, 24 de março de 2008

Três caminhos, Moisés, Jesus e o Coelho. Existirá um próximo?


[P.S.: Sim, esta estrada existe... está em Portugal. Achou que poderia estar em outro lugar?]


Na América ocidentalizada, europeizada pela modernidade cristã católica, nos acostumamos a celebrar a Páscoa. Embora, hoje em dia a grande maioria das pessoas nem saiba exatamente o significado primeiro desta data milenar. Conhecem apenas o significado último, aquele empregado pelo capitalismo, pela sociedade de consumo e pelos enredos de Walt Disney, do Coelho e dos Ovos de Chocolate. Aliás, quanto mais ovos e chocolates, mais Páscoa. Nem sempre foi assim, e nem para todos é assim. Existe dois grandes agrupamentos civilizatórios que, por caminhos diferentes, celebram a Páscoa num sentido histórico-religioso. Um terceiro agrupamento, hoje globalizado e transnacional, comemora... sem sentido, mesmo. Os dois primeiros, de mesma estirpe, a tradição judaica, o terceiro, não tem estirpe nenhuma, tem apenas conta bancária. De fato, antes da ascensão da Páscoa como Comércio, apenas os Judeus e os Cristãos comemoravam esta data, marco simbólico de sustentação de toda a tradição que compreendem suas cosmologias.

A primeira tradição remonta a milhares de anos, narrada por um povo chamado Judeu. Para estes, a Páscoa simboliza a passagem da escravidão, para a terra prometida, para a libertação. É a história do povo hebreu, que andava torturado e explorado pelos egípcios, e saiu errante pelo deserto sob o comando de Moisés, em busca da terra prometida por seu Deus Único, Jahvé. É, sobretudo, uma história de convulsão social, de revolta, de um grande líder, Moisés. É a história da chegada na terra da liberdade e dos gozos ofertados pela divindade, depois de passadas as agruras do Mar-Vermelho, da fome e da sede no deserto, das provações nas montanhas. Passagem, portanto, de uma vida antiga, para uma vida nova.

A outra tradição é uma versão mais recente, tem apenas pouco menos de 2000 anos e é narrada pelos seguidores de Cristo. Para os Cristãos, a Páscoa também simboliza uma passagem. Reconceitualizado, o enredo agora não fala mais de uma passagem entre mundos neste plano, mas trata da relação deste, com o reino de Deus. Para os Cristãos, não mais de um Deus Único, mas de um Deus mistério, único, mas trino, composto de três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A Páscoa marca a passagem da morte, para a vida, da ressurreição deste Deus, feito homem, na pessoa do Filho. É, também, a lembrança do fato histórico da morte do revolucionário homem, Jesus Cristo, um subversivo, agitador social, líder comunitário inconformado, agente político da oposição.

Mistérios, tradições, lembranças, marcos históricos. Seus rituais memorativos são repletos de sinais e símbolos. Tanto numa tradição, como na outra, o caminho para se chegar à Páscoa não é um caminho fácil. Uma fala de escravidão, de cordeiro imolado (pesah), de pães ázimos (matsah), de ervas amargas (maror), do deserto e do longo caminho para ser percorrido até a libertação. A outra, fala de prisões, de açoites, de traições, de cruz, de calvário, de abandonos e da morte, necessária para a ressurreição. A Páscoa, no ocidente ainda deveria ser sinal da passagem de uma realidade desgraçada, para uma plena da graça de Deus.

Mas, existe uma terceira narrativa, muito mais nova, doce e rentável. É uma tradição de pouco menos de 500 anos, surgiu depois da descoberta da América pelos europeus, do encontro com o cacau e da invenção do chocolate. É a narrativa do Coelho que esconde cestas de chocolates. Aqui, a Páscoa é bem mais agradável, compreende um esforço de suportar maratonas, às vezes tortuosas nos supermercados, na busca dos melhores produtos e preços, na ansiedade de vencer a espera da manhã do dia de domingo, de poder consumar a Páscoa. A recompensa é doce, gostosa, reconfortante. Nada de jejuns, ázimos, cruzes ou desertos, aqui temos Coelhos felpudos que falam e cantam, temos ovos de chocolate de todo tamanho, bacalhau e vinho importado, as amêndoas açucaradas, os caramelos de todos os formatos, os bombons com todos os recheios. E lucros! Claro, temos a passagem da baixa de vendas do natal, para o superávit da Páscoa. Esta é a Páscoa da tradição Capitalista contemporânea.

Em todas as três narrativas, tivemos a presença de uma figura de liderança carismática, Moisés, Jesus e o Coelho. Fico a pensar na velocidade de transformação da nossa imaginação social, na capacidade que temos hoje de criar enredos coletivos, de incitarmos massas para fazerem passagens, e fico curioso por saber quem será o novo líder da nova narrativa da Páscoa. Que rituais, reais, ou virtuais, eles nos apresentará para a sua memória? Que tipo de passagem deveremos fazer? Não sei, mas não me animo a pensar. Deixo para que o tempo escreva a sua história. Será que ainda farei parte dela?

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